A Academia das Ciências de Lisboa desempenha, desde 1779, um papel ímpar em Portugal no concernente às Ciências Exatas, Naturais e Humanas, Tecnologias e Economia. As Memórias que tem vindo a editar espelham a História das Ciências e das Letras em Portugal, bem como a evolução do estado científico e cultural do país.
Pela atividade e resultados, tradição e espólio desempenha papel relevante na História das Ciências. Teve-o pelo Ensino Superior, ministrado na Academia ou sob sua administração desde o século XVIII. É exemplo a Aula Maynense, criada pelo Padre Joseph Mayne (1723-1792), da Ordem Terceira, no seu Convento de Nossa Senhora de Jesus, da Ordem Terceira de S. Francisco. Procurava-se evidenciar as maravilhas naturais da Criação, lutando contra posições doutrinárias adversas – não através de censura inquisitorial ou outra repressão, mas recorrendo, outrossim, a um ensino de qualidade. Afinal, o Ensino Superior reaparecia em Lisboa após o termo do feroz autoritarismo pombalino e da visão tendente a favorecer o monopólio da Universidade de Coimbra.
Para isso, tornava-se necessário um Gabinete para apoio das Aulas dotado de “curiozidades”, algumas da mais alta qualidade, que Mayne obteve, mesmo de longínquas paragens da América à China e à Rússia, graças a auxílios entre os quais os da Família Real e da Real Academia das Sciencias. Estava a constituir-se o embrião de um Museu, apoiado numa rica Biblioteca conventual que, integrada na da Academia, ainda hoje contém, entre muitíssimos outros, exemplares das obras científicas mais relevantes, ao tempo – além de preciosos incunábulos e da sumptuosa Chronica Geral de Hespanha, volume mandado copiar por D. Duarte ca. de 1420.
Ensinaram-se na Academia disciplinas de Física, Química e Ciências Naturais.Realizaram-se Congressos, Colóquios e outros eventos com projeção internacional. Foram numerosas as Comunicações apresentadas e as edições de obras, muitas de grande vulto.
Devem sublinhar-se múltiplas atuações criativas da Academia de que resultaram e foram viabilizadas outras instituições, graças a suas propostas, apoio de vários pontos de vista, e cedência por empréstimo – a título gratuito e provisório – de espaços no seu edifício.
Exemplos:
• a Instituição Vaccínica, antecedendo uma Direção-Geral de Saúde, depois instalada noutro local;
• o Curso Superior de Letras, convertido em 1911, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, instalado inicialmente em espaços esvaziados pelo envio para a Escola Politécnica (futura Faculdade de Ciências de Lisboa) de espólio zoológico e mineralógico;
• o embrião do que depois veio a ser o Museu Nacional de Arqueologia, animado por José Leite de Vasconcellos, depois transferido para Belém;
• a 1.ª Commissão Geológica (1848) e a 2.ª Commissão Geológica (1857), que evoluiu para os Serviços Geológicos de Portugal e organismos em que o remanescente ia sendo integrado – alojados graças à venda em hasta pública a favor do Estado da rica pinacoteca conventual, integrada na Academia, o que permitiu libertar o 2.º andar.
Tem sofrido a ACL graves inconvenientes pela eternização de ocupações de espaços seus em exclusivo benefício de interesses alheios. Porém, não entrou em letargia, embora as suas atividades nem sempre tenham reflexo na Comunicação Social. Além das acima indicadas, prosseguem ativamente, na preparação de Mestrados, Doutoramentos, bem como na realização de estágios post-Doutorais e de Investigação, envolvendo nacionais e estrangeiros.
O Museu e suas coleções
O espólio do Museu é extremamente valioso a nível internacional. Não tem estado aberto ao público por carência de espaços e outras condições adequados, pelo que as principais atividades assentam em investigação para identificação precisa de material, em grande parte olvidado há muito.
Entre o espólio integrante do Museu, podemos referir, além de mobiliário, conjuntos de primacial importância (lista não exaustiva):
Pinacoteca
Conventual e outra, incluindo excelente conjunto de vultos notáveis do Convento de Jesus, incluindo o Padre Mayne e Frei Manoel do Cenáculo Villas-Boas (depois Arcebispo de Évora) e a própria Família Real, bem como o retrato de Jorge III de Inglaterra oferecido em 1810 à Academia por um dos seus filhos. |
Estatuária
Bustos de Alexandre Magno e de Imperadores romanos, em mármore de qualidade, recentemente identificados; o precioso busto de D. João de Bragança, 2.º Duque de Lafões e 1.º Presidente da Academia, assinado por Machado de Castro; conjunto de bustos modernos. |
Relíquias do Convento de Jesus
Com dádivas de D. Pedro III (rosário de âmbar, emblema de marfim com as armas reais e a Cruz da Ordem de Malta), da fase inicial do Museu Maynense e do contributo do Museu da Ajuda. |
Material etnográfico e outro/ “Curiozidades”
– do Brasil, com realce para a “jóia da coroa”, a coleção que resulta da célebre expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira (1783-1792) (estudos da responsabilidade de M. Telles Antunes em colaboração com Manuela Cantinho, em colaboração com Cristina Ferrão e José Paulo Monteiro Soares/ Kapa Editorial, Brasil) ; – o acervo precioso, da mais alta qualidade, em parte inédito, da Colômbia Britânica e Havai, obtido na terceira e última expedição de James Cook e transferido para a Academia graças a Sir Joseph Banks (Presidente da Royal Society e Sócio da nossa Academia) e a seu Amigo o abade Correa da Serra (estudos de M. Cantinho e M. Telles Antunes); – valioso conjunto de cerâmicas do Peru, das Culturas Chimú e Lambayeque, oferecido pelo Conde de S. Januário no séc. XIX à Academia Real das Sciencias (estudos de M. Cantinho e M. Telles Antunes); – envios no séc. XVIII a Mayne por intermédio de Kopke de peças da Rússia; – material de África, séc. XVIII (em estudo); – idem, da Índia (por estudar); – idem, da China, incluindo cerâmicas, uma taça em corno de rinoceronte, placas com pinturas e poemas, peças escultóricas de jade, etc. |
Restos de coleções zoológicas, botânicas/xilológicas, paleontológicas, mineralógicas, arqueológicas, em parte revistas (M. Telles Antunes)
Espécimes zoológicos provenientes do Brasil (Expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira), aves da colecção da Casa Real, em especial de D. Pedro V, insetos de África, etc.; – importante conjunto de peixes do Brasil preparados “em herbário” – resto da colecção recolhida por Rodrigues Ferreira então conservada no Real Museu da Ajuda, na maioria “requisitada” para o Muséum de Paris aquando da visita de Étienne Geoffroy Saint-Hilaire durante a governação do invasor napoleónico, Andoche Junot (1808) (descritos por M. Telles Antunes & A. de Cáceres Balbino). Esta técnica de preparação, obsoleta, foi abandonada em princípios do séc. XIX; talvez por se pensar que teriam menos interesse, as amostras sobreviventes das “requisições” escaparam à transferência para a Escola Politécnica; – conjunto de excelentes moldes em cera de peças anatómicas, sobretudo humanas, adquiridos em França no séc. XIX, a par de restos osteológicos humanos destinados a apoio de aulas; – caranguejos fósseis da Cochinchina utilizados como medicamento na Medicina chinesa e trazidos para Portugal pelo Padre João de Loureiro, pioneiro da Paleontologia e notável botânico, tema de publicação pela Academia – uma memória póstuma (1799); – material, remetido para Lisboa (ca. 1800), proveniente das primeiras colheitas de que há memória de peixes das afamadas jazidas cretácicas do Ceará, efetuadas pelo naturalista João da Sylva Feijó, também membro da Academia; – idem, incluindo um dente de “cachalote” do Miocénico da Adiça, tratado em Memória da Academia (1831) da autoria do Barão Wilhelm von Eschwege com aditamentos de Alexandre António Vandelli; – restos de colecções mineralógicas, utilizáveis em aulas, incluindo: peças escultóricas em alabastro classificadas segundo o Systema Naturae de Lineu; “jardins de minerais” – apresentações de amostras de minerais dispostas artisticamente, comuns no séc. XVIII; uma caixa de Mohs para determinação da dureza de minerais; etc.; – preciosa xiloteca encomendada originalmente pelo Príncipe Regente ao notável Mestre Marceneiro Jozé Aniceto Rapozo, que assina, com numerosas amostras de madeiras preciosas, na maioria do Brasil – algumas da Madeira, Cabo Verde, Angola e Índia – em estudo (J. Saporiti, LNEC). É o exemplar que pertenceu ao Convento de Jesus, onde foi observado em Maio de 1808 por Geoffroy Saint-Hilaire, que o referiu em Relatório sem todavia o “requisitar” para o Muséum; – tabuleiros com mais amostras de madeiras do Brasil, talvez duplicados; – instrumentos do Paleolítico do Casal do Monte, colhidos e oferecidos por Victor Fontes; etc. |
Tecnologia e desenvolvimento industrial em Portugal
Primeiras porcelanas de Bartholomeu da Costa (estudos por Martim de Albuquerque, Celso Gomes e M. Telles Antunes); – ensaios por Domingos Vandelli em Coimbra inspirados nas cerâmicas de Wedgwood do tipo “basalto”, e relações com a mina de carvão de Buarcos (M. Telles Antunes) evidenciadas por um modelo tri-dimensional, única representação geológico-mineira do séc. XVIII (1776) conhecida em Portugal; – cerâmicas da Fábrica do Rato, incluindo alguns dos melhores espécimes. |
Coleções de instrumentos de Física
Com algum equipamento de Química, estudados por Rómulo de Carvalho, com destaque para um precioso conjunto do século XVIII com espécimes de conceituados fabricantes de Paris e Londres. |
Espólio de escavações
O acervo do Museu foi grandemente enriquecido pela descoberta (M. Telles Antunes) de restos humanos e de animais em associação estranha, que justificou a solicitação de escavações no Claustro do antigo Convento de Jesus, cuja responsabilidade foi cometida a João Luís Cardoso. O espólio constitui uma amostragem ímpar de vítimas do Terramoto de 1755: numerosos restos humanos depositados nos espaços disponíveis acima dos enterramentos normais de frades, misturados, acompanhados de objetos religiosos e outros, restos de animais, carvão, cinzas, … ; é de sublinhar a preciosa informação acerca de violência, não relatada na documentação escrita, com assassinatos a tiro e arma branca, e canibalismo demonstrado. São óbvios: modificações devidas a fogo; caracteres da população, que incluía pessoas negras; patologias; etc. Estudos multidisciplinares, coordenados por M. Telles Antunes, desenvolvidos por Cristiana Pereira, A. Santinho Cunha, M.J. Lemos de Sousa, J. Pais, João Luís Cardoso, Manuel Lourenço, André F. A. de Almeida, Diogo Figueiredo, Ausenda Cáceres Balbino, Pedro Miguel Callapez e M. Telles Antunes. |
Numismática e Medalhística
o “medalheiro” do Padre Mayne, infelizmente saqueado no séc. XIX; colecções de sestércios romanos, utilizadas outrora em aulas de Numismática; moedas e medalhas diversas, incluindo excelentes colecções francesas e russas; medalha relacionada com Benjamin Franklin e presumivelmente oferecida a Correa da Serra; colecção de condecorações conferidas à Academia a par de outras que lhe foram legadas, entre as quais as do Almirante Gago Coutinho; etc. |
Legados
de Académicos e outras personalidades, com destaque para Júlio Fogaça, benemérito que legou à Academia propriedades e Biblioteca. Está representado em retrato a óleo da autoria de sua irmã Beatriz, de que há excelente retrato por Eduarda Lapa. |
Sumário histórico
A história foi acidentada.
A Real Academia das Sciencias de Lisboa preconizou, desde o início, a constituição de um Museu Nacional de História Natural, para o que, entre outras iniciativas, divulgou documentos da autoria de Domingos Vandelli acerca de recolha e preparação de espécimes. Aquele objetivo viria a ser concretizado pela instituição do Real Museu da Ajuda, complementado pelo Jardim Botânico anexo.
Contudo, os primeiros anos do século XIX foram período conturbado. Instabilidade; perda de espólio com cumplicidades internas em favor do Embaixador de França, general Lannes, e depois do Muséum national d’Histoire naturelle de Paris com as “requisições” de Saint-Hilaire; envio de material que o Príncipe Regente mandou para o novo Museu que fundou no Rio de Janeiro; prejuízos devidos à desorganização, má conservação e possível sabotagem; decadência relacionada com a revolução de 1820, não invertida após o retorno de D. João VI; sequelas da Independência do Brasil; mais instabilidade, de que é indício o disfarçado assassínio do Rei; Absolutismo e guerra civil; instabilidade política; a falta de conservação – tudo constituiu contexto negativo.
O espólio da Ajuda, ao menos o zoológico, foi transferido para o extinto Convento de Jesus, onde se encontrava o Museu Maynense. Veio a constituir acervo do Museu da Academia, a quem o Convento havia sido outorgado por D. Maria II, juntamente com espólio transferido do Museu da Ajuda e de outras origens. Abriu ao público. Porém, era flagrante a carência de recursos, apesar de este património ser da maior utilidade, até para apoio dos Cursos que decorriam no seio da Academia com êxito assinalável. Prosseguiu a degradação, agravada por roubos perpetrados por um funcionário que acabou por ser desmascarado. Material adicional havia sido adquirido no estrangeiro ou doado, algum por D. Pedro V.
Durante o reinado deste, interesses cruzados convergiram numa conjugação que os servia. A Escola Politécnica vinha solicitando transferência de colecções de História Natural quase desde a sua fundação em 1837. Por ouro lado, eram necessários espaços para instalar o Curso Superior de Letras no edifício da Academia e, para isso, convinha desimpedir as salas junto do Claustro alocadas ao Museu, o que era ouro sobre azul ao facilitar as pretensões da Escola Politécnica, defendidas por personalidade de peso na Política, na Ciência e em Sociedade discreta: José Vicente Barbosa du Bocage. Acompanhava-o o também simultaneamente Académico e Professor da Politécnica, Francisco António Pereira da Costa.
Alegava-se que a Politécnica dispunha de espaços melhores na sequência da reconstrução após o incêndio criminoso de 1848. O desembaraço do 2º andar, ocupado pela pinacoteca conventual, servia para instalar a Commissão Geológica e, simultaneamente, ia ao encontro das diligências, com o alto patrocínio de D. Fernando II, da criação do que viria a ser o Museu Nacional de Arte Antiga, onde foram parar a magnífica cabeça da Virgem de Zurbarán, que pertenceu ao Padre Mayne, bem como, talvez, quadros de Pillement e outros.
Cerca de 1860 foi efetuada a transferência de quase todo o material zoológico e mineralógico para a Politécnica, ultrapassando o Parecer negativo de Alexandre Herculano, cônscio do empobrecimento que daí resultaria para a Academia. A transferência redundou no agravamento de riscos associado a estudantes revolucionários e à gravosa perda de âmbito que, de nacional, ficou limitado ao gabarito estreitinho de uma Escola, apesar do rótulo fictício e pretensioso de Nacional que interesses criados têm pretendido manter por terem sido recebidas colecções do Museu Nacional, o da Ajuda. Prosseguiu a degradação. A destruição, com perdas absolutamente irreversíveis, veio a seguir neste lamentável processo: culminou num dos incêndios criminosos que em 1978 devastaram a antiga Politécnica, convertida em Faculdade de Ciências.
O Museu da Academia das Ciências de Lisboa, que designamos a justo título por Museu Maynense, teve direcção com descontinuidades, às vezes com hiatos de décadas. Está por fazer o seu historial. Entrou em letargia até a renascença devida ao nosso antecessor, Rómulo [Vasco da Gama] de Carvalho, a quem se deve a valorização e classificação dos instrumentos de Física e a retoma do estudo de material etnográfico.
Mesmo no estado atual, o património justifica Investigação, que tem decorrido com dinamismo na própria Academia, potenciando contactos com outras Instituições. Requer identificação, catalogação, restauro, exposição ao público, divulgação por outros meios. Estamos longe de o conseguir. O intercâmbio internacional tem sido proveitoso. Têm atuado na Academia Investigadores de alto nível de países europeus e americanos em relação com o Museu, em Congressos, Colóquios, Estágios post-Doutorais e visitas de estudo. Peças têm, com as cautelas devidas, sido expostas em grandes Exposições nacionais ou internacionais (Paris, Rio de Janeiro, etc.). É essencial a Exposição permanente, necessário alocar espaços para exposições temporárias e para conforto do público, instalar oficina de apoio e melhorar condições de trabalho.
O exposto realça o primacial interesse histórico do que sobreviveu à destruição. Relíquias de nenhum modo tão irrelevantes quanto poderiam sugerir omissões de difusão pública. É de prosseguir, valorizando o contributo científico, tecnológico e, mesmo, artístico de Portugal.