O códice Ms 1 A[zul] tem razões para chamar à atenção. Foi objecto de estudo do académico Luís F. Lindley Cintra que sobre o estudo do texto apresentou tese de doutoramento na Faculdade de Letras de Lisboa, em 1950.
Como livro manuscrito corresponde a uma tradição textual começada em versão constituída por D. Pedro, Conde de Barcelos, mediante compilação de crónicas anteriores. O trabalho de redacção tem sido objecto de sucessivas interrogações e análises. No estado que o Manuscrito da ACL, deve ser visto num processo que não está encerrado na leitura e no modo de o preservar como livro.
Recentemente, fomos chamados a acompanhar o trabalho de recuperação da encadernação que se encontrava há anos desconjuntada e importava restituir a um estado funcional. O códice havia sido desmontado da sua encadernação, por motivos que alegadamente estariam relacionados com eventual infestação de xilófagos que ameaçariam a integridade do volume. Depois de uma tentativa falhada, só em 2018 foi possível reverter o processo, mediante projecto apresentado pela ACL à Fund. Calouste Gulbenkian, que generosamente o patrocinou. Acompanhei de perto o trabalho de reencadernação que foi realizado sob a orientação da técnica de restauro Doutora Inês Correia, acompanhada de Isabel Zarazúa Astigarraga.
A Academia das Ciências deve ser posta a par desse trabalho, por várias razões: a) o códice testemunha uma das mais emblemáticas obras da cultura hispânica do século XIV; b) a sua versão textual remonta possivelmente a tempos da monarquia de Avis; c) na sua forma codicológica, remete-nos para uma instituição do livro que parece ser o scriptorium de D. Duarte.
Da análise material podemos inferir que o códice remonta a scriptorium servido por responsáveis conhecedores das técnicas librárias, nomeadamente quanto a racionalização de formatos e estruturação de leituras e supõe utilização em espaço comum de leituras; a iconografia da iluminura é representativa de uma cultura do livro em modo solene e celebrativo da história comum; perdeu alguns elementos, como a organização de um índice, no início do livro, ficando a faltar-lhe também o início do texto.
Como texto, a Crónica de 1344 remonta uma obra de compilação e refundição de várias formas anteriores; a versão portuguesa deve ter sido começada em redacção feita pelo conde de Barcelos, D. Pedro Afonso, pouco tempo depois da Batalha do Salado (1340), em que a participação do reino de Portugal, ao lado de outros reinos hispânicos, foi decisiva para derrotar os exércitos sarracenos, mas em que o conde não pôde participar. A redacção do conde intenta celebrar a glória do reino de Portugal e integrá-lo no concerto da história hispânica. A sua redacção foi assumida por uma comunidade de leitores que nele reviam as origens de uma nação que emergira da colectividade de barões e buscava razões de coesão como país. Certamente foi determinante para a sua preservação que a Casa de Avis lhe tenha prestado atenção: os príncipes de Avis, nomeadamente D. Duarte e também D. Pedro, este através de seu filho, o Condestável, foram decisivos para acolherem a Crónica Geral de Espanha nas suas bibliotecas; o manuscrito de D. Duarte chegou à Academia das Ciências de Lisboa, o de D. Pedro é o que se encontra em Paris, BNF.
A história do manuscrito da ACL, Ms 1 A, está relacionada com a família Alcáçova Carneiro que o deve ter recebido da Casa Real como presente em alguma data festiva: como hipótese, consideramos que factores relacionados com perda de afecto pelo livro manuscrito e enlevo pela entrada do livro impresso, terão dado origem a menor apreço pelo manuscrito, não obstante a sua ligação ao rei D. Duarte. Por razões que nos escapam entrou ele na posse da família de Pedro de Alcáçova, escrivão da fazenda de D. Afonso V e de D. João II, de quem também foi secretário.
Após os acontecimentos de Alcácer-Quibir, o manuscrito foi herdado por Dona Luísa de Távora e, em resultado de heranças familiares, chegou às mãos do 5º marquês de Castelo Melhor, João de Vasconcelos e Sousa Caminha Faro Veiga. Em 1878, aquando da morte do Marquês, a biblioteca foi leiloada pela família a fim de satisfazer dívidas por saldar. A esse leilão se habilitou Academia das Ciências de Lisboa que assim comprou para a sua biblioteca o códice por 202.000 réis.